Crise em cartaz
A demissão em massa dos funcionários de uma instituição financeira abre o filme “Margin Call – O Dia Antes do Fim”, candidato ao Oscar em 2012 na categoria roteiro. O formato que o roteirista e diretor J. C. Chandor encontrou para descortinar a crise econômica de 2008 tem explicação. Quando o sistema financeiro entrou em colapso, o próprio Chandor viu seu pai ser demitido do Merril Lynch, depois de trabalhar por 35 anos no banco de investimentos. “O roteiro vem de uma perspectiva muito pessoal e acredito que é isso que faz dele um filme tão incrível. É um conto de advertência”, disse ao Valor a produtora, Rose Ganguzza.
A chamada “crise do subprime” – em referência ao crédito imobiliário com alto risco de inadimplência que capitaneou o colapso – não inspirou apenas Chandor, estreante em longa-metragens. “Inside Job”, traduzido no Brasil para o nada explicativo “Trabalho Interno”, de Charles Ferguson, foi premiado com o Oscar de documentário no ano passado. Lançado em DVD no Brasil sem passar pelo cinema, há ainda “Capitalismo: Uma História de Amor”, de Michael Moore.
No plano da ficção, está “Wall Street – o Dinheiro Nunca Dorme” e, com um pé na ficção e outro na realidade, “” (“Too Big to Fail”). Grande Demais Para QuebrarA produção para TV da HBO estreia em DVD no Brasil no primeiro semestre. Em uma lista à parte, em que a crise é pano de fundo para um filme para lá de mamão com açúcar, aparece “Larry Crowne: o Amor Está de Volta”.
Com exceção de Larry Crowne – que ensina americanos demitidos a aproveitarem o momento para estudar e amar -, os filmes que retratam a crise carregam uma boa dose de crítica. “É claro como água para quem presta atenção. A mãe de todos os males é a especulação, dívida alavancada”, diz Gordon Gekko, em palestra a estudantes de uma universidade em “Wall Street – o Dinheiro Nunca Dorme”. No filme, ele deixa a prisão onde ficou por oito anos por fraudes financeiras cometidas em “Wall Street – Poder e Cobiça”, lançado em 1987.
No filme de Oliver Stone, o clima de crítica vacila diante da trama afetiva entre Gordon Gekko e sua filha. Já em “Margin Call”, não há espaço para final feliz. “Nós discutimos muito se os personagens principais deveriam ou não aparecer algemados no fim do filme, mas, na realidade, nós sabíamos: não foi assim que as coisas aconteceram. Esses homens foram viver outro dia e provavelmente cometeram os mesmos atos de antes”, diz Rose.
Mesmo com o reforço do cinema, a produtora de “Margin Call” não é muito otimista sobre o poder educativo da crise. “Em última análise, precisamos fazer a pergunta: o que aprendemos com tudo isso? A resposta assustadora é provavelmente ‘nada’.”
Se é que não tem o poder de transformar, o cinema tem ao menos a capacidade de fazer pensar, na opinião da cineasta e professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), Dacia Ibiapina. “Estamos vivendo em um mundo de muita informação, mas ela precisa ser sistematizada e organizada. O cinema, por ter uma temporalidade distinta dos outros meios de comunicação, em que tudo é muito rápido, tem a capacidade de mergulhar mais fundo, suscitar reflexões.”
O cinema reflete cada vez com mais velocidade os fatos contemporâneos, na opinião de Luiz Nazario, professor de história do cinema da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFGM). “Hoje o cinema é uma fábrica de realidade”, diz. No contexto histórico, ele afirma que o momento estaria mais para os irmãos Lumière do que para Georges Méliès. Na França do fim do século XIX, os filmes de Lumière eram gravados na rua e retratavam a realidade, enquanto os de Méliès preferiam os cenários fictícios.
O mix mais evidente do cotidiano com a ficção dá-se em “Grande Demais para Quebrar”. Os personagens são representados por atores, mas recebem os nomes reais. Paul Giamatti, inclusive, tem uma semelhança desconcertante com Ben Bernanke, presidente do Federal Reserve, o banco central americano. O papel rendeu a ele o Screen Actors Guild por atuação excepcional em série de TV. Diretores e a produção foram indicados para o Emmy e o Globo de Ouro.
“Essa fluidez da fronteira entre ficção e realidade é uma tendência do momento. Até porque alguns eventos conseguem superar a capacidade de invenção do cinema”, diz Dacia. No caso de “Grande Demais para Quebrar”, o livro inspirador, do jornalista Andrew Ross Sorkin, já deixou as pistas para construção da trama realista. Em visita ao Brasil em 2011, Sorkin disse que, ao fazer entrevistas para o livro, pedia ao interlocutor que contasse onde estava e o que fazia no momento em que recebeu determinada ligação ou que tomou alguma decisão sobre a crise.
Já “Trabalho Interno” ficou somente no campo da realidade. “Se fosse apresentado para mim como uma tese de doutoramento em economia, eu não teria nenhuma dúvida em aceitar”, diz o ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira, professor emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Cinéfilo desde os 16 anos, quando fez um curso de cinema no Museu de Arte de São Paulo (Masp), Bresser-Pereira acompanha de perto o circuito de filmes de economia. Para ele, o documentário de Ferguson faz uma avaliação bem estruturada do “fracasso” dos economistas neoclássicos em administrar a economia mundial. A obra pode ter convencido a opinião pública, segundo ele, mas não foi capaz de respingar na teoria. “Mexer no ensino da economia e nessa redoma acadêmica é mais difícil.”
“Margin Call”, para o economista, retrata bem a realidade do mercado financeiro. Um momento crucial do filme é quando a instituição financeira oferece altíssimos bônus aos funcionários para que passem à frente ativos com alto risco de inadimplência que, sabiam eles, valeriam nada em pouco tempo.
A falta de controle dos altos executivos do banco sobre os riscos assumidos pela instituição e a ausência de preocupações morais chegam a ser caricaturais no filme de Chandor. “Só há três maneiras de vencer nesse negócio: seja o primeiro, seja o mais esperto ou trapaceie”, diz John Tuld, CEO da instituição financeira. Não passa despercebida a semelhança com o nome de Dick Fuld, que comandava o Lehman Brother’s, banco de investimentos que quebrou em 2008.
A crítica ácida de “Trabalho Interno” e de “Margin Call” não atraiu tanto o brasileiro quanto “Larry Crowne: O Amor Está de Volta”. O casal Tom Hanks e Julia Roberts arrebatou 396 mil pessoas ao cinema, em uma bilheteria de R$ 4,2 milhões, enquanto o público dos outros dois não passou de 25 mil pessoas, segundo o site especializado em cinema Filme B. A diferença de linguagem é certamente o que separa as produções. Nos filmes que tratam diretamente da crise, desfilam termos nada populares, como “value at risk” e risco moral. “Assim como a moda e o consumo, o cinema está cada vez mais segmentado”, diz Dacia.
A crise é pano de fundo em “Larry Crowne”. O romance é entremeado por tentativas do personagem de quitar suas dívidas e evitar a entrega da casa hipotecada, que havia despencado em valor. No filme, dirigido pelo próprio Tom Hanks, ser demitido até parece bom. Talvez seja mesmo para quem tropeça em Julia Roberts enquanto busca refazer a vida.
Em uma lista de mais de 200 filmes a serem lançados no Brasil em 2012, do site Filme B, nenhum é sobre a crise. Parece que o tema se esgotou. Pelo menos até o próximo colapso, que certamente virá, segundo o personagem de Michael Douglas em “Wall Street”: “As bolhas acabam com os excessos, reduzem as manadas, mas nunca morrem. Elas voltam em formatos diferentes”.
Educação financeira com pipoca
Cinco carros na garagem, televisor de plasma de 180 polegadas na sala e jet ski na piscina. O consumismo exacerbado será levado ao limite no filme “Até que a Sorte nos Separe”, com estreia prevista para 12 de outubro. A inspiração é o livro “Casais Inteligentes Enriquecem Juntos”, publicado pelo consultor financeiro Gustavo Cerbasi.
Nas livrarias, as vendas passam de 4 mil por mês e a estimativa é chegar a 1 milhão até o lançamento do filme. No cinema, com um investimento de R$ 5, 5 milhões, a expectativa é ultrapassar esse número. As últimas produções brasileiras – como “O Palhaço” e “Cilada.com” – atraíram cerca de 3 milhões de pessoas ao cinema.
O formato escolhido foi o de uma comédia romântica, um desafio para a produtora. “A Gullane tem tradição em filmes um pouco mais autorais e histórias mais densas, mas enxergamos uma oportunidade de entrar na comédia, com a condição de que achássemos um elenco que realmente levasse à risada”, diz o sócio-diretor Caio Gullane. A produtora tem no portfólio “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, “Carandiru” e “Bicho de Sete Cabeças”.
Já o roteirista tem raízes cômicas. É Paulo Cursino, o mesmo de “Sob Nova Direção”, da TV Globo. Os atores Leandro Hassum e Danielle Winits vão formar o casal consumista. Premiados na loteria, eles levam uma vida sem regras financeiras. Isso até que ele descobre, dez anos depois, que a família está completamente falida. O momento é o menos propício possível, já que a mulher vive uma gravidez de risco. O contraponto será a família vizinha, que evita todos os prazeres que envolvam gastar dinheiro.
O ensinamento do filme será o equilíbrio. “Na linguagem do mercado financeiro, nossa opção seria pelo moderado”, brinca Gullane. A mensagem é que dinheiro é bom, mas não é tudo. Frases do livro de Cerbasi vão aparecer em cartões ao longo do filme. “A ideia é, sim, educar, mas na forma de diversão”, diz o consultor financeiro.
No livro, Gustavo Cerbasi defende que grande parte dos problemas de relacionamento dos casais começa no dinheiro – no excesso ou na falta dele. Os dois muitas vezes não percebem, entretanto, que a origem dos conflitos é financeira.
A ideia de levar a obra às telas partiu da distribuidora brasileira Paris Filmes, que procurou o consultor. Para ele, é um sinal de que a demanda existe. “É o primeiro filme no Brasil que começa pela bilheteria”, diz Cerbasi, que participa da produção como sócio e consultor.
“A economia vai bem, as classes C, D e E ganharam poder de consumo e as pesquisas têm mostrado que as pessoas estão mais preocupadas em como administrar o seu dinheiro”, afirma o diretor do filme, Roberto Santucci. A gravação, no Rio de Janeiro, começou no dia 26 de janeiro e a previsão é que se encerre em 10 de março.
O livro de Cerbasi atravessou o oceano e chegou a Portugal, Espanha e Moçambique. Essa também é uma possibilidade para o filme, segundo Gullane. “Temos um circuito bastante habitual em outros países.”
No Brasil, há espaço para a educação financeira. A busca por crédito cresceu 8% em 2011, depois de ter avançado 16% em 2010, segundo a Serasa Experian. Somente em janeiro, a inadimplência aumentou 17% ante o mesmo mês de 2011. Resta saber se esses consumidores querem ser educados.
Fonte: Luciana Seabra, Valor Economico