Caixa não sabia da fraude no PanAmericano, segundo vice-presidente de Finanças da Caixa
O Banco PanAmericano era e continua sendo um ótimo negócio para a Caixa Econômica Federal(CEF), garante Márcio Percival Alves Pinto, vice-presidente de Finanças da Caixa e o principal representante da instituição nas negociações com o Grupo Silvio Santos para a compra de participação no PanAmericano. A operação foi concluída no fim de 2010 e reaberta em janeiro deste ano para a entrada do BTG Pactual, depois da descoberta de um rombo adicional de R$ 2 bilhões no banco. As investigações no ano passado já haviam mostrado um buraco de R$ 2,3 bilhões originado por um sistema engenhoso de fraudes contábeis e operacionais.
A fraude, que foi rastreada e detectada pelo Banco Central em agosto de 2010, está sob investigação da Polícia Federal (PF). A Caixa abriu processo administrativo contra o Grupo Silvio Santos e outro, no Conselho de Arbitragem, contra o Banco Fator, encarregado da operação. Os passivos trabalhistas estão sendo levantados, mas esses são de total responsabilidade do Grupo Silvio Santos. A Caixa, porém, não dá detalhes desses processos.
Percival disse que parou de falar sobre o assunto depois de prestar informações e dar explicações no Congresso Nacional. Por ter sido uma negociação polêmica, por causa da descoberta de fraudes no meio do caminho, a participação do banco federal no PanAmericano foi objeto de interpretações diversas e muitas discussões. “Quando fica poluído, muita informação, muita discussão, você não é mais escutado”, comentou.
Ontem ele decidiu falar ao Valor para “recolocar a nossa posicão desde o começo” e esclarecer fatos e dados. Entrar no processo de bancarização e buscar participações em instituições financeiras e não-financeiras era, desde 2003, uma questão estratégica para a Caixa, disse. A instituição, que era a primeira colocada em total de ativos no início dos anos 90, chegou ao fim daquela década em quinto lugar. Estava minguando. Em 2003, com a posse do novo governo, houve a decisão política de dar ao banco estatal condições de competição e expansão. Partiu-se, então, para reformular a Caixa e imprimir regras de governança, conta o vice-presidente.
Em outubro de 2008, dias após o início da crise econômica mundial, Percival foi procurado por diversos bancos pequenos e médios, interessados em formar parcerias com o futuro braço de participações da instituição, a CaixaPar. No rastro do “crash” internacional, o governo editou medida provisória autorizando a Caixa a comprar participações e criando a CaixaPar. O então presidente do Grupo Silvio Santos, Luiz Sebastião Sandoval, controlador do PanAmericano, foi um dos que procuraram Percival naquele mês. A Caixa gostou do que viu.
Fomos enganados. A Caixa foi enganada, o mercado foi enganado, as auditorias também”
A aquisição de quase 37% do capital social do PanAmericano foi uma decisão “empresarial”. Segundo ele, não houve nenhuma pressão política nessa operação. Também não houve dinheiro público envolvido.
Ao final, comentou: “Este processo é cheio de feridas. Queremos cicatrizá-las e virar a página”.
Valor: Quando a Caixa decidiu que precisava adquirir participações em outros bancos?
Márcio Percival : Para a Caixa sempre foi muito importante ter condições de crescimento iguais a dos outros bancos, através de participação em instituições financeiras e não-financeiras. Nos anos 1990, todos os bancos cresceram muito dessa forma, porque foram atrás do não-cliente, aonde era originado o crédito. Todos fizeram isso. E a Caixa, que no início da década dos 90 era o primeiro banco do ponto de vista de ativos, no final da década era o quinto. Portanto, essa era uma demanda da instituição. Logo que entrei aqui, em 2007, estava colocada a possibilidade de comprar o Banco do Piauí, mas não tínhamos autorização. Era preciso uma lei. Para a CEF era fundamental continuar crescendo e para crescer a saída era via participação estratégica em instituições financeiras e não-financeiras. O sistema foi se consolidando todo em grandes empresas, a concorrência cada vez mais firme, os bancos cada vez mais fortes. Quando veio a aprovação da CaixaPar isso deu uma oportunidade para a CEF executar essa estratégia.
Valor:Foi em 2008, com a lei que autorizou essa participação, que vocês passaram a olhar para o banco PanAmericano?
Percival : Nosso interesse de ter participação era uma decisão empresarial da CEF. Foi uma cultura que cresceu aqui no fim dos anos 90 para cá. Com a criação da CaixaPar, já em outubro de 2008 fomos procurados por uma dezena de bancos. Estavam preocupados com a crise externa e começaram a conversar conosco sobre parceria. Nós analisamos bastante e vimos que tinham bancos regionais, bancos com um produto só, bancos com clientela que não era a nossa. Começamos a descartar os que não tinham sinergia com o nosso negócio, os que estavam com baixa liquidez, governança precária. Precisávamos crescer no crédito ao consumo e por meio de parceira estratégica. Desses, o que nos chamou a atenção no primeiro momento foi o PanAmericano.
Valor:Por quê?
Percival : Primeiro pelo portfólio dele, que naquele momento completava o nosso. O PanAmericano tinha leasing, nós não. Tinham forte capacidade de geração de crédito direto ao consumido, financiamento de veículos. O modelo de negócio do PanAmericano era interessante para nós, com grande penetração nos nichos de mercado que os grandes bancos não tinham capacidade de fazer, nós não tínhamos capacidade de fazer. O PanAmericano tinha 21 mil canais (pontos de venda) no comércio para originação e negociação de crédito, 200 pontos de venda, mais de 2,5 milhões de clientes, que eram em potencial clientes da CEF porque ele não tinha agência. Tinha complementaridade dos produtos, e aqueles que tinham similaridade, como no consignado, tinha sinergia, porque eles atuavam em nichos que nós não atuávamos.
A CEF tinha comprado o banco e a questão patrimonial recomposta, o BC não precisava liquidar”
Valor: Quando foi o primeiro contato?
Percival : Em outubro de 2008.
Valor: A CEF gostou do que viu?
Percival : O índice de Basileia do PanAmericano era de 21,5% (regra prudencial que estabelece a relação entre o patrimônio de referência e os riscos ponderados, que no caso do Brasil é de 11%). Quando fez a emissão primária de ações (IPO), em novembro de 2007, o Basileia deles foi a 26,3%. O volume de operações de crédito era de R$ 6,5 bilhões por semestre. O banco tinha 11 milhões de cartões de crédito. Tinha liquidez de R$ 1,5 bilhão. Seu IPO foi feito com grande sucesso. Tinha nível 1 de governança da Bovespa, isso significa que eles tinham o conselho fiscal, o comitê de auditoria interna, o conselho de administração, conselheiros independentes, auditoria externa (da Deloitte). Tinham feito duas captações internacionais, estava capitalizado, com grande potencial de crédito e um modelo de negócios que era gerar crédito e vender a carteira para outros bancos.
Valor: E esses outros bancos compravam?
Percival : Eles vendiam de R$ 3 bilhões a R$ 4 bilhões aos bancos, que continuaram comprando até 2010. Não existe essa história de que os grandes rejeitaram essas carteiras porque estavam desconfiados. Todos os grandes bancos compraram carteiras do PanAmericano. Carteira podre tem em todos os processos, isso é normal. Agora, quando os bancos compram nesse patamar de R$ 3 bilhões há de se convir que o negócio funciona. Em setembro de 2010 eles tinham R$ 5,6 bilhões em carteiras vendidas para outros bancos. O problema que deu não foi na qualidade da carteira, mas na contabilização da carteira.
Valor: Esses dados davam boa sustentação ao negócio?
Percival : Com certeza. Não havia como pensar o contrário. O balanço do banco era validado, eles tinham feito duas captações internacionais e grandes bancos foram “advisors” do IPO.
Valor: E como ocorreu a negociação?
Percival : Eles nos procuraram em outubro de 2008, depois da quebra do Lehman Brothers. Vieram conversar na Caixa aqui em Brasília. Ali começou nosso negócio, que era estratégico para nós. A governança da Caixa mudou bastante dos anos 90 para cá. A partir de 2002, 2003, o processo decisório aqui passou a ser extremamente rígido. Todas as decisões (na aquisição do PanAmericano) foram colegiadas, com pareceres das áreas técnica e jurídica. As aprovações foram em todas as instâncias da Caixa e da CaixaPar. Nosso nível de governança é extremamente eficiente. Contratamos o Banco Fator que contratou a KPMG. Além disso, também contratamos mais uma auditoria, algo que não precisava, para o “finance opinion”, que foi a BDO. Fizemos quatro avaliações: duas internas da CEF, uma do Fator e uma da BDO. Fizemos “due diligence” entre janeiro e dezembro de 2009. Até nos acusaram, à época, de sermos muito lentos.
Valor: Ao longo de todo aquele ano de análise e auditoria não se verificou nada?
Percival : Diante daquele sistema eficiente de fraude? Não. Nós fomos enganados. A Caixa foi enganada. o mercado foi enganado, as empresas de auditoria foram enganadas. Então é muito fácil construir hoje uma teoria conspiratória dizendo que nós sabíamos do fato. Os relatórios dos bancos para investidores diziam que as ações iriam subir. Nós fomos enganados.
Valor: O Banco Central também foi enganado?
Percival : Precisamos fazer justiça com o Banco Central. Foi o BC que pegou a fraude.
Valor: Quando?
Percival : Quando o BC fez o processo de circularização. Não era apenas uma fraude contábil, era uma fraude operacional também. Havia uma contabilidade paralela que era informada à central de crédito do BC. Só era possível detectar isso fazendo uma análise de circularização dentro do sistema financeiro nacional, checando quem comprou carteiras de crédito de quem e por quanto. Foi o que o BC fez e pegou o problema. O Banco Central atua de maneira super eficiente e é uma referência para outros países. Graças a ele que temos sistemas de monitoramento bastante reforçados. Foi uma fraude muito bem montada, não tinha como alguém pegar a olho nu. Nós fomos enganados.
Valor: Houve pressão política do governo Lula para a Caixa comprar parte do PanAmericano?
Percival : Não teve ninguém que mandou a gente fazer, foi decisão interna da Caixa. Era interesse nosso para crescer de forma a não perder mercado, como ocorreu conosco nos anos 1990. Isso era e continua a ser estratégico para nós.
Valor: Em que momento o BC se manifestou sobre a operação?
Percival : Fizemos a consulta ao Banco Central em dezembro de 2009, quando comunicamos a operação e encaminhamos o contrato de compra e venda, o relatório de sinergia, o relatório de viabilidade financeira, toda a documentação. O BC analisou e a aprovação preliminar foi em julho de 2010. Esse é o processo natural de qualquer operação desse tipo. A carta do BC, do dia 19 de julho, que aprovava a incorporação desde que todas as condições fossem cumpridas. dizia assim: “Manifesta-se favoravelmente ao ingresso da Caixa no grupo de controle dessa instituição [PanAmericano] e suas controladas (…) ficando a manifestação final na dependência da apresentação de documentos pertinentes relativos à operação (…), inclusive o acordo de acionistas (…) esta diretoria colegiada do Banco Central aprovou a operação”. Era uma aprovação. Eles deram o sinal verde para que concluíssemos o negócio. A aprovação final veio em dezembro de 2010, depois de implementado o acordo de acionista.
Valor: Como você foi avisado, nesse ínterim, que o banco tinha problema?
Percival : No dia que estávamos numa reunião com Silvio Santos (então dono do PanAmericano), o Sandoval (Luiz Sebastião Sandoval, presidente do Grupo Silvio Santos), Maria Fernanda (presidente da Caixa na ocasião) e eu, na sede da CEF em São Paulo. Isso foi no dia 9 de setembro de 2010. Terminada a reunião o Sandoval foi para a sede do PanAmericano. Meia hora depois ele me ligou e disse: “Estou sendo informado que houve alguns problemas aqui no nosso sistema”. Fui para lá. Quando cheguei toda a diretoria do PanAmericano estava numa sala. Eles falaram que o sistema deles não estava batendo com o do Banco Central, que havia uma inconsistência. Eu disse para eles prepararem o material e discutir com o BC essa inconsistência.
Valor: O BC já estava desde maio envolvido na fiscalização da compra de carteiras entre os bancos?
Percival : Ele começou a fazer a circularização em agosto. Em setembro eles notaram que havia problema. Começamos então a fazer reuniões com o BC para acompanhar a história. Já tínhamos dado o segundo cheque, o primeiro em dezembro de 2010, que era o sinal, e o segundo em julho, quando o BC concedeu a pré-aprovação.
Valor: A Caixa já havia pago todo o valor?
Percival : Deu R$ 739 milhões. Já tínhamos quitado todo o processo, mas havia cláusula de devolução.
Valor: A hipótese do BC liquidar o PanAmericano, então, era zero?
Percival : A CEF já tinha comprado o banco e a questão patrimonial já tinha sido recomposta, então o BC não precisava liquidar. O controlador do PanAmericano tomou conhecimento das fraudes e recompôs todo o patrimônio do banco através de um acordo com o Fundo Garantidor de Créditos (FGC).
Valor: A CEF também não pensou em desfazer o negócio?
Percival : Não, justamente porque quando o problema foi constatado ele já veio com a solução. Para nós, a solução foi satisfatória porque o patrimônio estava integralmente lá e o potencial do banco continuava ali. Em novembro de 2010, o Banco Central nos chamou para assinar um termo de comparecimento, onde ele fez toda uma análise das inconsistências contábeis e da solução, dando um prazo para a resolução, que era a saída dos antigos diretores.
Valor: Em que momento os diretores indicados pela Caixa entram no PanAmericano?
Percival : Em dezembro de 2010, quando houve a homologação do acordo de acionistas. Daí entramos na gestão do banco. O FGC não tinha quadros para gerir o banco, então a Caixa colocou cinco diretores lá. O PanAmericano nos interessou muito porque teríamos a gestão compartilhada do banco, teríamos nosso representante no conselho fiscal e no comitê de auditoria. Em novembro, com o termo assinado no BC, colocamos cinco diretores para tocar o banco. De um dia para o outro saiu toda a diretoria e entraram cinco diretores novos e o presidente. O banco gerava R$ 30 milhões de crédito por dia, para uma demanda diária de R$ 120 milhões. A partir de janeiro de 2011, a direção ficou com a Caixa e o FGC. Depois veio o BTG. A primeira autorização para o ingresso do BTG foi em maio e a homologação para participação do banco de investimento no conselho de administração do PanAmericano foi em outubro.
Valor: Em janeiro de 2011 percebeu-se que o rombo era maior?
Percival : Certo. Os novos diretores contrataram a PricewaterhouseCoopers para fazer uma auditoria e ela levantou um novo rombo, de R$ 2 bilhões. O Grupo Silvio Santos e o FGC foram atrás de uma nova solução. O rombo não era de R$ 2,3 bilhões, mas de R$ 4,3 bilhões. Nós fomos enganados. Não sei nem que fez essa enganação toda. Mas fomos enganados. Não que sejamos ingênuos. O fato é que os investidores lá fora, os bancos aqui, as auditorias, o mercado todo foi enganado. O Madoff não enganou?
Valor: Aí vocês foram atrás do André Esteves (do BTG).
Percival : Aí o FGC começou a fazer negociação com cinco bancos. O BTG era um dos cinco. O negócio era bom. Vocês vão ver no ano que vem o que o Pan vai aprontar no mercado. Eles vão incomodar muita gente, estamos construindo uma nova plataforma de negócios. Dos cinco bancos interessados em entrar no PanAmericano, dois eram grandes, um doméstico e um internacional. Era preciso tomar uma decisão rápida. Imagine os investidores olhando o PanAmericano todo o dia na mídia. Aquilo era um pânico. Era uma situação objetiva: um grupo de pessoas praticou uma fraude e de repente aquilo foi para a política.
Valor: Nessa fase, houve alguma ingerência do governo, alguma pressão?
Percival : Nunca teve pressão política. Nossa decisão foi empresarial e para a Caixa é uma questão de sobrevivência. Precisamos ter parcerias em todas as áreas, não apenas financeira, mas também em tecnologia da informação, em cartões de crédito. Tudo. Em 2003 a gente não tinha nem área de crédito. A partir de 2004 foi feita toda uma governança aqui. A compra do PanAmericano não foi ação anti-crise, não foi porque o banco estava quebrando em meio à crise externa. Foi uma decisão empresarial. Em 2000 e 2001 o governo fez um forte aporte de recursos do Tesouro Nacional e resgatou a Caixa. Em 2003 (na gestão Lula) houve a decisão de expandi-la, fazê-la crescer. A Caixa foi construindo sua estratégia dentro desse processo.
Valor: Como foram os entendimentos com o BTG?
Percival : Nossas condições de negociação eram de que não iríamos colocar dinheiro público nessa história, seria uma solução de mercado. A Caixa também não iria diminuir sua participação nem perderia a governança do PanAmericano. Essa é uma sociedade importante e o banco vai fechar no azul este ano. Estamos muito confiantes com o parceiro, que é excelente. Estamos juntando duas experiências diferentes: a cultura centenária da Caixa com uma instituição mais ágil e mais agressiva no mercado. São experiências complementares.
Fonte: Claudia Safatle e João Villaverde, Valor Economico