Quadrilha negocia dados confidenciais e forja ações na Justiça
O Fantástico traz uma grande investigação jornalística. Quadrilhas negociam dados confidenciais de aposentados, donos de automóveis e clientes de bancos. Os criminosos forjam ações na Justiça e pegam dinheiro sem que os donos percebam. A reportagem é de Bruno Ferraz e Maurício Tavares.
Se você tem carro, preste atenção na conversa a seguir:
Homem: Estou precisando de uma base de dados de nome e placa de veículo do Brasil inteiro.
Fornecedor: Vai negociando que eu consigo.
A partir de informações confidenciais como essa, as quadrilhas podem aplicar golpes e, em tese, até planejar sequestros. Trata-se de um perigo também para os aposentados. “’Tu’ digita a cidade, aparece todo mundo que está aposentado”, disse o fornecedor.
A Polícia Federal, o Ministério Público e o setor de inteligência da Polícia Civil de São Paulo investigam há mais de um ano denúncias de um grande esquema de vazamento de informações sigilosas de cadastros de automóveis, da previdência e de bancos.
Homem: Qualquer banco que você tiver interessa.
Fornecedor: Eu posso conseguir para você.
Em gravações autorizadas pela Justiça, os criminosos se vangloriam dizendo ter acesso a dados dos principais bancos do país.
“Estão ativos e inativos na mesma relação. Deve ter quase um milhão de nomes. Teria que pensar, talvez, em R$ 100mil ou R$ 200 mil”, continuou o fornecedor.
Em São Paulo, pelo menos 12 pessoas estão sendo investigadas. O advogado Carlos Alberto Martins, que mora em Lençóis Paulista, interior do estado, é acusado pelo Ministério Público de ser um dos compradores das informações sigilosas. Em gravações telefônicas, ele foi flagrado negociando bancos de dados com um homem identificado pela polícia como César Mansani.
César Mansani: Carlos?
Carlos Alberto Martins: Oi.
César Mansani: César. Carlos, eu estou com uma base de dados. Eu queria mostrar pra você.
Carlos Alberto Martins: Isso me interessa, sim.
César Mansani: Te vendo por R$ 15 mil. Daí, levo para você amanhã à noite.
Segundo as investigações, o advogado Carlos Alberto Martins, que foi duas vezes vereador de Lençóis Paulista, usou dados sigilosos para aplicar um golpe milionário. Em apenas um ano, o de 2010, a Justiça de Birigui, a 220 quilômetros de Lençóis Paulista, recebeu 192 ações suspeitas. Todas com o mesmo objetivo: cobrar as perdas de quem tinha caderneta de poupança na época do Plano Collor 1, de 1990.
O Fantástico teve acesso a toda essa papelada e foi conferir os dados informados à Justiça. No endereço que deveria ser de um homem casado e aposentado, não tem nada construído, e ninguém conhece essa pessoa na região. Encontramos essa mesma situação em todos os endereços.
Somando as 192 ações, o valor solicitado passa de R$ 1.250 milhão. Anexados aos processos, estão extratos bancários informando quanto o cliente tinha na época. Segundo a investigação, os papéis são verdadeiros e fazem parte dos dados sigilosos comprados pelo advogado Carlos Alberto Martins.
“A obtenção desses dados se deram em relação a milhares de cidadãos, possibilitaram o ajuizamento de centenas de ações fraudulentas”, afirmou o promotor de Justiça Rafael Abujamra.
Indignadas e surpresas – assim ficaram as pessoas localizadas pelo Fantástico que tiveram o nome e os extratos usados indevidamente. A dona de casa Maria Margarida Miranda mora em Natal (RN). “Meu CPF andando por aí afora, é trambicagem”, reclamou.
A dona de casa Vanya Toscano da Nóbrega é de João Pessoa (PB). “Foi como um golpe, um tsunami que cai na sua cabeça e até hoje estou tentando me recuperar”, disse.
As vítimas do golpe confirmam que os extratos são verdadeiros. Já o número da identidade e a assinatura… “Não é minha assinatura e não entrei com ação, de jeito nenhum”, afirma a aposentada Maria Martins Lopes de Lima, de Ourinhos (SP).
Surpresa maior teve a comerciante Maria Helena Garcia, de Ourinhos, interior de São Paulo. A ação, que é do ano passado, está em nome do tio dela, Luiz Garcia. “Deve fazer uns dez anos que o meu tio morreu”, conta. Os golpistas falsificaram até a assinatura do morto. “Era analfabeto”, afirma a comerciante.
Em todas as 192 ações, há uma procuração, também falsa, dando amplos poderes ao advogado Carlos Pasqual Júnior. Segundo as investigações, ele também faz parte da quadrilha. “Nunca ouvi falar”, disse a dona de casa Mariane Oda.
Ao ter certeza da fraude, o juiz Carlos Gustavo de Souza Miranda, de Birigui (SP), não autorizou o pagamento das ações e descobriu que o golpe era bem maior. “Constatei que em várias outras comarcas, milhares de ações também tinham sido ajuizadas em nome desse advogado”, afirmou.
O Ministério Público estima que o golpe das ações tenha rendido cerca de R$ 20 milhões à quadrilha. A Justiça de Birigui condenou Carlos Pasqual Júnior a pagar multa e indenizações equivalentes a R$ 263 mil. “Esse advogado, ficou provado que ele fazia parte do esquema”, contou o delegado Nelson Barbosa Filho, da seccional de Araçatuba (SP).
Em 15 de julho de 2009, Carlos Pasqual Júnior registrou boletim de ocorrência dizendo que tinha perdido a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e que alguém usou o documento dele para entrar com as ações falsas. Para a polícia, essa foi uma estratégia da quadrilha para aplicar o golpe e escapar da acusação.
“Esse boletim de ocorrência ele apresentou justamente para dizer que é inocente. Ficou provado também que é mentira”, acrescentou o delegado Nelson Barbosa Filho.
Fomos até Ibitinga, no interior paulista, onde fica o escritório de Carlos Pasqual Junior. O advogado alegou inocência, disse que falsificaram a assinatura dele nas ações e preferiu não gravar entrevista. “Eu prefiro esperar calado o desfecho disso”, disse.
Contra o outro advogado, Carlos Alberto Martins, apontado como chefe da quadrilha de golpistas, pesam outras acusações. Ele é fundador do Instituto Nacional de Proteção e Defesa dos Direitos do Cidadão (Inapadec), que tem 23 escritórios em três estados.
O Inapadec é uma entidade particular que oferece assistência jurídica para quem tinha poupança na época dos planos Collor I, Verão e Bresser. Mas, segundo a investigação, o Inapadec servia para driblar uma norma da OAB.
“Nosso código de ética proíbe, de forma muito expressa, a captação de clientela, o oferecimento de serviço ao mercado. A punição vai de censura à própria exclusão dos quadros da OAB”, declarou Marcos da Costa, vice-presidente da OAB em São Paulo.
O advogado Marcelo Oliveira, que trabalhou dois anos no Inapadec, confirma a irregularidade. “O Carlos Alberto Martins liga, manda carta. Ele chegava: ‘Olha, eu represento a associação, a associação que está indo atrás. Não sou eu’”, contou.
Marcelo Oliveira diz que existem cerca de 200 ações fraudulentas em que ele aparece como o advogado que deu entrada no processo, mas alega que não sabia de nada. “Carlos Alberto Martins e os seus comparsas falsificavam minha assinatura”, disse Marcelo Oliveira, que também é investigado.
Em troca de redução da pena, o advogado contou à polícia que recebia de Carlos Alberto Martins relações de clientes de bancos feitas a partir do vazamento das informações sigilosas. “Esse aqui é o saldo que as pessoas tinham: R$ 2.654 milhões”, aponta.
Marcelo Oliveira afirma que presenciou Carlos Alberto pagando por um pacote de dados secretos. “Ele parou em um posto. Uma pessoa veio e entregou para ele”, relatou.
Os bancos dizem que, nos últimos anos, identificaram diversas fraudes praticadas por advogados especializados em ações de planos econômicos, como adulteração de extratos e apresentação de procuração falsa na agência bancária para conseguir informações dos clientes.
“Houve outro caso, em Maringá, onde uma instituição procurava obter ilegalmente informações sobre clientes para repassar a escritórios de advogados. Infelizmente, há essas quadrilhas organizadas para fraudar os bancos e fraudar também os consumidores”, afirmou Murilo Portugal, presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban).
Mas por que as ações que cobram perdas da poupança de 20 anos atrás ainda despertam tanto interesse dos advogados? O principal motivo é que ainda é possível recorrer à Justiça.
“Veja se existe alguma ação civil pública em seu beneficio e recorra à Justiça, pedindo a satisfação do seu crédito. Na época, havia 70 milhões de cadernetas de poupança. No entanto, estima-se que pouco mais de um milhão de pessoas recorreram à Justiça”, estima Maria Elisa Cesar Novais, gerente jurídica do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
Na quinta-feira passada (1º), uma grande operação policial cumpriu mandados de busca e apreensão em seis cidades paulistas. As principais apreensões da semana aconteceram na casa e no escritório do advogado Carlos Alberto Martins. Os policiais apreenderam computadores, documentos e mais de 20 microfilmes originais, que guardam informações bancárias sigilosas.
“Pode ser que tenha ocorrido um caso de corrupção com algum funcionário de um banco, algum ex-funcionário do banco. Pode ser que empresas que são contratadas para fazer outras coisas no banco tenham tido acesso fraudulento a esse tipo de microfichas”, afirmou Murilo Portugal, presidente da Febraban.
Um ex-funcionário de banco é suspeito de ser um dos fornecedores dos dados sigilosos. Segundo o Ministério Público, João Manfredini trabalha atualmente em uma empresa que presta serviço para diversos bancos. Com ele, foram apreendidos computadores e documentos. Fomos à casa de Manfredini e deixamos recados no telefone. Ele não nos atendeu.
“Se ficar comprovado que há empresas que agiram inadequadamente, elas vão ser descredenciadas e vão ser processadas. Se ficar comprovado que houve envolvimento de funcionários, eles vão ser demitidos, punidos e também processados”, garantiu o presidente da Febraban, Murilo Portugal.
Carlos Alberto Martins, acusado de ser um dos compradores dos bancos de dados, teve a prisão decretada esta semana. Ele está foragido. Deixamos recados para o advogado nos ligar e na noite de sábado (3) ele ligou. E reconheceu que existe a venda de informações bancárias.
Repórter: O César que repassaria, para o senhor, os dados.
Carlos Alberto Martins: César passava pra mim? César deve passar. Os ‘cara’ vende isso daí pra tudo canto. A única informação que eu tinha, que eu tive, foi só de uma microficha que encontraram. É ficha antiga.
Repórter: Mas é sigiloso, doutor.
Carlos Alberto Martins: Mas não importa. E daí se é sigiloso? Se alguém chega e te fornece pra você, você tem os dados. Eu não comprei. Isso daí veio para o instituto.
A polícia já sabe que advogados de outros estados também compraram informações sigilosas. Há conversas de César Mansani, o negociador dos dados, com pessoas do Paraná.
César Mansani: É um negócio bom, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. É extrato mesmo.
Murilo Portugal, presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), tranquiliza os clientes. “Os investimentos para proteger esses dados são elevados. Os dados mais modernos são todos mantidos em bases eletrônicas. Tem sistemas bastante seguros, com índices de 99,99% de segurança”, garante.
O Fantástico investigou quem é o negociador César Mansani e como ele atua no mercado clandestino de informações sigilosas. Ele mora na Zona Oeste da capital paulista. Por telefone, o produtor de reportagem do Fantástico simula interesse em abrir um escritório de advocacia e marca um encontro.
O encontro foi marcado em um shopping da Zona Oeste de São Paulo às 14h30. Vamos tentar negociar alguns dados sigilosos com ele. César Mansani chega em um carro importado, avaliado em mais de R$ 200 mil. Ele diz que consegue os bancos de dados e propõe uma sociedade.
César Mansani: Depois, no recebimento, a gente racha. Meu 1/3, por exemplo, dos honorários advocatícios. Banco de dados é normal. Isso daí é para localizar uma pessoa, poupadores. Eu consigo o banco de dados.
Nas interceptações telefônicas, César Mansani negocia também informações da Previdência.
Fornecedor: Até 2008 esse programa do INSS. Tem o número do benefício, nome, telefone, endereço, CPF da pessoa. Sabe quanto o cara me pagou nesse programa que eu peguei? R$ 100 mil.
César Mansani: Nossa.
Em nota, o INSS informou que denúncias de fraudes são encaminhadas ao Ministério Público e à Polícia Federal. Disse ainda que atualiza sistematicamente as soluções de segurança para evitar acessos indevidos e vazamentos de dados.
Nas escutas telefônicas, César Mansani também pede a uma pessoa as informações de todos os donos de carros do Brasil: “Placa de automóveis e endereço do proprietário. Os dados do proprietário“.
A resposta é que alguém do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) pode conseguir os dados.
Homem: Ele vai ver lá, viu? Ele fica em Brasília, entendeu? Lá no Denatran.
César Mansani: A gente senta e fecha o negócio.
Homem: Está bom. Beleza.
O Denatran informou que os critério de acesso às bases de dados são revisados periodicamente e que o acesso a informações pessoais, como nome e endereço, é restrito aos órgãos públicos.
Tentamos falar com César Mansani. Fomos à casa dele, deixamos nossos dados e ligamos várias vezes. Neste domingo (4), por telefone, uma pessoa informou que Mansani só vai se pronunciar depois que souber exatamente do que está sendo acusado.
O setor de inteligência da Polícia Civil de Araçatuba, interior de São Paulo, informou que vai indiciar esta semana César e, pelo menos, outras dez pessoas pela participação nas fraudes e no vazamento de bancos de dados.
A polícia apura se as informações sigilosas também foram repassadas para assaltantes e sequestradores. A Justiça já bloqueou as contas bancárias dos suspeitos. “Eu me senti roubada. Usando meu nome, meus dados. Nem tanto pelo dinheiro, mas por estar usando meus dados para fazer coisa errada”, comentou a dona de casa Mariane Oda.
Fonte e confira o link ds matéria: http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL1671994-15605,00.html