Garantia fraca trava crédito a carro
Recuperar um carro dado como garantia em uma operação de crédito no Brasil pode levar mais de seis meses e custar, somando desde despesas jurídicas a eventuais multas, entre R$ 7 mil a R$ 9 mil para o banco. Pior, a taxa de sucesso do processo de retomada de veículos leves não passa de 20% a 25% dos casos, em média.
Os dados foram relatados ao Valor por executivos de alguns dos principais bancos do segmento, tanto comerciais quanto ligadas a fabricantes. Os números ajudam a entender por que as instituições atribuem a queda do estoque de financiamento de carros, em boa parte, à dificuldade para retomar os bens em caso de calote. É claro que os bancos tentam repassar ao devedor tais custos, mas isso depende de encontrá-lo.
Para tentar resolver a situação, bancos e governo costuraram um projeto de lei com objetivo de acelerar e baratear o processo. O rascunho da nova regra, segundo um executivo que participa das negociações, basicamente tiraria o processo de retomada das mãos do Judiciário. Mais importante, valeria de forma retroativa para todos os contratos. Bastaria, assim como no crédito imobiliário, uma notificação extra-judicial ao devedor. Com isso, os bancos esperam cortar algo em torno de R$ 5 mil da conta para reaver o veículo.
O pesado custo para se retomar um veículo do devedor inadimplente, somado às baixas taxas de sucesso da empreitada, ajudam a explicar a reticência dos bancos em financiar carros. O estoque de crédito de veículos está em R$ 189 bilhões, com queda de 8,1% no acumulado de 12 meses terminados em abril. “Sem mudar as regras de recuperação, o mercado não consegue crescer além do tamanho que tem hoje”, afirma o executivo de um dos principais bancos da modalidade.
Além de caro, o processo de retomada é lento. O projeto de lei em discussão também encurtaria o tempo que leva a retomada hoje, para algo mais próximo do que se observa no crédito imobiliário, afirma um executivo que teve acesso à proposta. Hoje, segundo um executivo de um grande banco do segmento, a duração média do processo de retomada é de 210 dias, se a instituição financeira conseguir encontrar o carro. No financiamento habitacional, a recuperação do bem leva até 60 dias.
As dificuldades de retomada têm outro efeito colateral perverso: fomenta um mercado ilegal de revenda de veículos de devedores inadimplentes, os chamados “carros NP” (não pagos). Uma busca rápida na internet mostra que o veículo NP – também conhecidos como carros “bruxa” ou “pokemon” – chega a custar uma pequena fração do cobrado em uma tabela de referência (como a Fipe). A “contrapartida” do preço é o risco de que o veículo possa ser apreendido a qualquer momento, embora os vendedores prometam até dois anos de livre circulação, desde que tomados alguns cuidados.
Embora o crédito imobiliário e o de veículos façam uso do mesmo instrumento legal para a garantia – a alienação fiduciária -, os imóveis contam com lei separada para descrever o processo, a Lei nº 9.514, de 1997, a mesma que criou o Sistema de Financiamento Imobiliário. Já a alienação fiduciária de veículos ocorre com base no procedimento de uma lei da década de 1960. “No imobiliário, a segurança na rapidez da retomada fez a modalidade saltar nos últimos anos”, afirma um executivo.
Não que os custos de se recuperar um veículo fossem desconhecidos pelos bancos, mesmo quando a modalidade crescia a mais de 20% ao ano. Só que alguns fatores agravaram essa conta. “A escala do mercado aumentou na última década. Com menos veículos para tentar recuperar, o processo funcionava melhor”, argumenta Roberto Dagnoni, diretor-executivo da Unidade de Financiamentos da Cetip. A Cetip registra as garantias das operações de crédito de veículos. Em sete anos, o saldo de financiamento de veículos cresceu perto de 180%.
Houve também o surto da inadimplência na modalidade nos últimos anos, que até hoje não voltou aos níveis mais baixos da série histórica. A taxa de calotes fechou abril em 4,96%, ante o pico de 7,23% de junho de 2012 e o vale de 3,66% de março de 2011. Outro fator foi a padronização pelo BC das tarifas bancárias em 2008. Com isso, os bancos perderam uma fonte de recursos com a qual “compensavam” parte desses custos, diz um executivo de um banco.
A variação regional nos custos do processo de retomada impressiona. Na Paraíba, onde é mais caro, as despesas judiciais de um processo de busca e apreensão de veículo fica na casa dos R$ 7 mil. No Rio Grande do Norte, o mesmo processo sai por R$ 800. Os custos foram levantados pela agência de cobrança Cercred, que tem 60% de suas operações em empréstimos de veículos, a pedido do Valor.
A necessidade de um oficial de justiça estar presente para a recuperação do veículo é outro entrave do processo atual. “A disponibilidade do oficial varia conforme a região. A fila costuma ser maior nas capitais, então a retomada leva mais tempo”, afirma Leonardo Coimbra, presidente da Cercred. Ainda que o banco consiga espaço na agenda do oficial, outro problema é ir até a casa do tomador e não encontrar o carro. Aí, o processo volta para a fila do oficial e o banco sai à caça do veículo novamente.
Além dos custos jurídicos de se retomar um veículo, a conta inclui o pagamento de multas e outros débitos, em especial o IPVA, que tenham sido deixados em aberto pelo dono do carro. “Sem pagar esses débitos, não consigo regularizar a documentação e vender o carro”, afirma um executivo, que calcula em até R$ 3 mil o preço dessa regularização. É comum que, quando o devedor sabe que o carro está prestes a ser tomado, deixe de pagar as obrigações relacionadas e de cuidar do carro, acelerando a depreciação.
Quando consegue encontrar o devedor e completar o processo, o banco leva o carro a leilão. Segundo um executivo que atua no ramo, os bancos vendem o carro, em média, por 70% do valor da tabela de referência de preços. Desse dinheiro, deduzem o valor da dívida e todos os custos de recuperação. “Se o processo fosse mais barato, sobraria um ‘troco’ maior para o devedor”, afirma esse executivo. Não é incomum, porém, que a depreciação do carro faça com que o valor do arremate seja tão baixo que reste ainda uma dívida a ser paga pelo cliente original.
Os bancos citam, como parâmetro, o processo de retomada nos Estados Unidos. Lá, a partir do momento em que o cliente deixa de pagar, o banco contrata um “repo man”, um funcionário privado que retoma o carro onde quer que ele esteja, a qualquer momento. “A discussão na Justiça é posterior e o banco já tem a certeza de ter a garantia”, conta um executivo.
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