A história por trás da derrota do Blackberry para o iPhone
Com o BlackBerry perdendo reiteradamente a briga para smartphones cheios de aplicativos nos últimos anos, já era hora de uma resposta definitiva da presidência da empresa.
Na Research In Motion Ltd. (RIM), no entanto, a coisa era complicada. A fabricante do BlackBerry tinha dois diretores-presidentes. Para piorar, cada um trabalhava em um lugar — estavam a uns dez minutos de carro um do outro. Reuniões com os dois presentes eram raras, contam ex-executivos da RIM e gente que já trabalhou com a empresa.
Muitos fatores se combinaram para que a RIM anunciasse ontem o primeiro prejuízo operacional em sete anos (a empresa fechou o primeiro trimestre com prejuízo líquido de US$ 518 milhões). Mas um deles certamente foi a dupla personalidade na sala da presidência, dizem ex-executivos. Com investidores fazendo crescente pressão sobre a empresa, um dos cabeças, o fundador Mike Lazaridis, só pensava em lançar uma nova geração do BlackBerry com um novo sistema operacional. Já o outro presidente, Jim Balsillie, resolveu investir em outra estratégia, cuja meta era o licenciamento de certas tecnologias exclusivas da empresa.
Hoje, nenhum dos dois está na presidência. A dupla foi substituída em janeiro por Thorsten Heins, velho braço-direito de Lazaridis que está cortando custos. Segundo ele, a RIM está empenhada em lançar, mesmo com atraso, o novo BlackBerry no primeiro trimestre de 2013. Mas Heins já contratou bancos de investimento para explorar alternativas e não descarta a venda da empresa, cuja ação caiu quase 70% em 12 meses e derrubou o valor de mercado da RIM para menos de US$ 4 bilhões — menos de uma décima quinta parte do valor em seu auge.
A RIM ainda tem um colchão de liquidez confortável, de mais de US$ 2 bilhões. E não tem dívida, o que lhe dá certa folga para lançar o novo aparelho, com um sistema operacional chamado BlackBerry 10 que, segundo a empresa, “será o padrão para a computação segura em plataformas móveis”. Segundo uma pessoa por dentro da situação, a RIM informou aos bancos que a assessoram que está focada no lançamento. Se o celular emplacar, deve recuperar parte do valor perdido. E a nova tecnologia ajudaria no caso de venda ou de parceria futuras, disse essa mesma pessoa.
De acordo com entrevistas com mais de dez ex-executivos da RIM e profissionais do setor próximos à empresa, a dificuldade atual ali dentro é fruto da confiança cega no BlackBerry como produto. Na descrição dessas pessoas, esse problema foi agravado por um arrastado debate interno sobre quem seria o principal cliente da empresa; pelo lançamento de uma série de aparelhos que tentaram, em vão, equiparar-se aos rivais; e por conflitos entre distintas áreas da empresa.
Lá atrás, a RIM apostou que tanto o cliente corporativo como o individual continuariam a preferir o e-mail fácil de usar do BlackBerry à profusão de recursos e aplicativos no iPhone, da Apple Inc., e de celulares com o sistema operacional Android, da Google Inc. Até quando viu a clientela começar a se afastar do BlackBerry, a RIM hesitou em agir.
A certa altura, a RIM se aliou a operadoras de telefonia que temiam o domínio da Apple para fazer frente ao iPhone. Os modelos nascidos dessa colaboração, porém, não conseguiram gerar a mesma empolgação do iPhone.
A certa altura, executivos da RIM foram buscar talento fora da casa — o que só aumentou a tensão nos quadros de uma empresa onde Lazaridis e Balsillie já tinham feudos, dizem ex-executivos da RIM e profissionais que trabalharam com a empresa. Segundo eles, as duas equipes às vezes batiam de frente, sobretudo à medida que a RIM ia perdendo mais e mais terreno no mercado de smartphones.
A RIM informou que a caracterização de “dupla personalidade” não condiz com a realidade. “Como em qualquer empresa inovadora, houve momentos em que pessoas na organização divergiram, mas essa não era a norma”, lia o comunicado.
“A estrutura na presidência funcionou bem por muitos anos e permitiu que cada um dos copresidentes se concentrasse na área em que era forte”, acrescentou a RIM. “Os dois sempre tiveram uma relação de trabalho profissional e eficiente e sempre estiveram em direta comunicação”.
Pouco depois de assumir o comando, no início do ano, Heins suspendeu as iniciativas de licenciamento de Balsillie. A RIM informou que não comenta deliberações internas de caráter fechado.
“Toda empresa de sucesso tira lições de cada situação e usa isso para seguir avançando”, disse Lazaridis, observando que ele e Balsillie “sentiram que era o momento certo na trajetória da RIM para entregar o comando a outra pessoa”. Balsillie não respondeu a pedidos de entrevista.
A RIM não disponibilizou Heins para uma entrevista.
A RIM basicamente inventou o e-mail no celular. Fundada por Lazaridis em 1984 com US$ 15.000 emprestados pelos pais, a empresa chegou a ter um valor de mercado de mais de US$ 80 bilhões em seu apogeu, em 2008.
Balsillie — que se uniu à RIM em 1992 após ter considerado a aquisição do controle da empresa — e Lazaridis viraram os bilionários mais famosos do Canadá.
Por trás do sucesso estava a busca inarredável de Lazaridis de uma engenharia robusta e de inovação e a meta de expansão no mercado de Balsillie. Ex-executivos afirmam, contudo, que a empresa também tinha uma aversão a qualquer inovação que não reforçasse seus grandes pontos fortes: a rede exclusiva e a fama de segurança do sistema.
Lá atrás, a esmagadora maioria dos clientes da RIM eram empresas, que forneciam o BlackBerry ao pessoal para a comunicação por e-mail. Mas o número de usuários comuns foi crescendo — gente em geral interessada em recursos como câmera, games, internet. A RIM lançou celulares com câmera e MP3, incluindo o Pearl em 2006 e o Curve em 2007 — ano em que debutou o iPhone. Ainda assim, operadoras de telefonia parceiras da RIM temiam que a enorme popularidade do iPhone pudesse dar à Apple um poder desmedido no mercado.
Executivos da RIM tampouco deram atenção a alarmes disparados internamente. Em 2010, a divisão de vendas fez um estudo sobre o futuro do teclado táctil, o celebrado recurso de digitação do BlackBerry. O relatório alertou que, na era de aparelhos da Apple com navegação virtual, o teclado teria espaço cada vez menor no mercado, contou uma pessoa a par do estudo segundo a qual o alerta foi ignorado.
Naquele mesmo ano, Balsillie perguntou numa reunião se a RIM devia se preocupar com uma nova tendência: o usuário que levava o celular próprio para o trabalho. Alguns executivos disseram que a tendência trazia risco; outros disseram que não havia por que se preocupar. Balsillie fechou com esta última opinião, disse uma pessoa próxima à empresa.
Os dois presidentes se reuniam com bastante regularidade e usavam mensagens instantâneas e o telefone para trocar ideias. Já quando a RIM passou a ter problemas o mais comum era que cada um estivesse operando em mundos muito distintos, segundo essas pessoas — que dizem ainda que as equipes de cada um não se comunicavam bem (quando se comunicavam).
No fim de 2011, a ação da RIM tinham descido ao menor nível em oito anos. No dia 22 de janeiro, o conselho, também encabeçado por Lazaridis e Balsillie, anunciou que os dois deixariam o comando. Balsillie deixou o conselho. Lazaridis ainda é seu vice-presidente não executivo. A RIM anunciou ontem que vai cortar de 5000 vagas até o fim do ano. (Colaboraram Anton Troianovski, Jessica E. Vascellaro e Anupreeta Das.)
Fonte: Will Connors, WSJ, VE