Pine vai às Arábias em busca de capital
Logo que Angela Martins entrou na sede do banco Al Rajhi em Riad, capital da Arábia Saudita, no início do mês, ela tirou a espécie de “burca” que cobria todo o corpo, inclusive o rosto, e manteve apenas o véu fino que geralmente emoldura a cabeça das muçulmanas – mulheres são proibidas no banco, ela é uma exceção. Chegava para a primeira de uma série de apresentações de duas semanas na região, com o intuito de aproximar o mercado local (que segue a xariá, o conjunto de regras islâmicas), e o Banco Pine, onde é diretora de negócios internacionais. Segundo Angela, cada vez mais os “petrodólares” de todo o Golfo Pérsico olham com interesse para oportunidades financeiras no Brasil.
No começo do ano o Pine fechou o primeiro “murabaha” entre um banco de capital totalmente brasileiro e bancos islâmicos, em uma captação de US$ 37,5 milhões. Um “muharaba” é uma espécie de empréstimo sindicalizado, mas com lastro em ativos reais (no caso do Pine, contratos de commodities), e é um dos métodos mais populares usado por bancos islâmicos para a concessão de crédito. Além do Al Rajhi, a operação teve participação dos braços islâmicos do Citibank, J.P. Morgan e do Commerzbank. A taxa de retorno a ser paga pelo Pine não foi revelada. “A ideia é fazer uma operação maior no futuro, só com bancos islâmicos”, conta Angela.
Seguir as finanças islâmicas não é obrigatório para nenhum muçulmano, trata-se apenas um segmento de crédito. As regras respeitam o código de leis da religião de Maomé, e proíbem a cobrança de juros e de especulação – nela, o mercado de derivativos não existe -, além de não permitir operações para empresas de bebidas alcoólicas, pornografia e de carne de porco, entre outras. Quem toma dinheiro emprestado sempre dá um ativo real como garantia. Ao longo do tempo esse ativo se valoriza, e então paga-se a quem emprestou parte da valorização – mas não ouse chamar isso de juros.
Na agenda de Angela, no Oriente Médio, foram 40 reuniões com bancos islâmicos, fundos soberanos e investidores do Kuait, Qatar, Bahrein, Abu Dhabi e Dubai, além da Arábia Saudita (Riad e Jidda). Uma das visitas foi aos administradores do fundo soberano de Abu Dabi, cujo patrimônio, estima-se, chegue a US$ 1 trilhão, e que é proprietário de prédios inteiros em zonas comerciais nobres no Rio de Janeiro.
“Em 1996, quando cheguei ao Al Rajhi pela primeira vez, tive de conseguir uma autorização especial da diretoria e não pude tirar a abaia (capa preta que deixa apenas o rosto de fora) nem para fazer a apresentação. Não podia sair nem um fio de cabelo”, conta Angela, lembrando da primeira visita à região.
O desconhecimento das regras financeiras islâmicas no Brasil faz o país perder a oportunidade de abocanhar um segmento de forte crescimento no exterior. Até 2016, o Deutsche Bank estima que o valor total de ativos que respeitam as leis islâmicas no mundo chegará perto US$ 1,8 trilhão, de acordo com relatório recente.
No segmento de “sukuks” – espécie de bônus que pode ser público (soberano) quanto corporativo com lastro em ativos reais, e que paga retornos a partir da valorização desses ativos ao longo do tempo -, foram captados cerca de US$ 84,4 bilhões só em 2011, um crescimento de 62% ante 2010.
Só que a demanda por títulos desse tipo ainda é muito maior do que a oferta, segundo relatório da agência de classificação de risco Fitch Ratings. “Emissores de fora do mundo árabe poderiam contribuir com o aumento de oferta e assim, inclusive, diversificar a sua base”, diz o texto. “O mercado de sukuks está crescendo a uma velocidade rápida, mas as opções ainda são basicamente originárias de países de população majoritariamente muçulmana, como Malásia, Qatar, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Indonésia, que juntos respondem por 90% desse mercado no mundo”, disse Bashar Al-Natoor, analista da Fitch baseado em Dubai.
Para Salah Jaidah, diretor do segmento de finanças islâmicas do Deutsche Bank, as principais dificuldades de expansão decorrem da falta de opções competitivas de “funding” de longo prazo e em escala. Também não há mecanismos de mitigação de riscos ou um sistema de padronização de regras internacionais, fator apontado por Al-Natoor, da Fitch. A falta de profissinais “fluentes” em finanças tradicionais e nas islâmicas ao mesmo tempo é outro impedimento para a expansão, diz Jaidah.
A França, em 2009, adaptou o seu código financeiro local para se adequar e até incentivar as finanças islâmicas. O governo da África do Sul começou a estudar em dezembro a emissão de “sukuks soberanos”, e a Irlanda cogita utilizá-los como alternativa de funding, já que o país só poderá acessar os mercados por meio da emissão de bonds tradicionais novamente em 2013, devido a acordos feitos com o FMI e União Europeia para resgatar o país.
Assim como o Deutsche Bank, que tem um braço islâmico há dez anos e acompanha o mercado de perto, outros grandes bancos privados mundiais não ignoram esse segmento recheado de gordas cifras. O Reino Unido é o país ocidental com o maior número de instituições que respeitam tais regras, seguido por Estados Unidos, Austrália e França. O Barclays, por exemplo, é um dos gigantes britânicos com forte atuação em finanças islâmicas, e o americano Goldman Sachs está em processo de criação de um programa voltado para emissão de sukuks de US$ 2 bilhões, parecido com outro feito recentemente pelo braço do HSBC no Oriente Médio.
O Banco Central do Brasil não determina nenhuma regra específica para regulamentar as finanças islâmicas por aqui, e nenhum banco nacional tem uma divisão unicamente voltada para negócios do tipo. O BC só proíbe vínculos financeiros entre bancos brasileiros e o grupo Al-Qaeda, o Talibã e o governo do Irã, que sejam estabelecidos por meio de concessão de doações, assistência financeira ou empréstimos, independente de essas transações respeitarem as regras islâmicas ou não. As determinações seguem resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
“Existe muita liquidez nas finanças islâmicas, e os bancos de lá estão se abrindo cada vez mais”, diz Angela, do Pine. Desde que ela voltou à sua rotina brasileira, às vésperas do Carnaval e sem lenço nenhum na cabeça, começou a se preparar para receber os primeiros visitante das Arábias por aqui. “Sou uma viajante de negócios, não questiono as regras deles, faço tudo como pedido”, diz. Pelas regras religiosas, ela só não pode brindar os negócios fechados com caipirinha, com o risco de perdê-los antes de finalizá-los.
Fonte: Filipe Pacheco, Valor Economico