Microcrédito migra para o Sudeste
A Rainha da Cocada é cliente do Banco Itaú. Cansada de empurrar carrinho de Yakult pelas ladeiras paulistanas, Izaura Neves resolveu abraçar suas raízes baianas e investir no doce de côco. O problema é que por mais gostoso que fosse o quitute, engrenar as vendas era difícil. “Eu vendia cocada na porta de casa, no degrau mesmo”, diz.
As coisas começaram a mudar quando dona Izaura recebeu a visita de um agente de crédito. “Eu lembro de ter pensado ‘Essa aí eu quero ajudar'”, conta Marcelo Lacerda, o funcionário que visitou a quituteira. “O que me chamou atenção era o cuidado com que ela arrumava os doces pra vender no tabuleiro”, lembra. Hoje, dona Izaura é cliente do banco, está no fim do terceiro empréstimo e conseguiu sair de um tablado com potes de doces para uma pequena venda, com dois freezers, onde tem de tudo. Inclusive cocada.
A Rainha da Cocada, apelido pelo qual a doceira é conhecida na vizinhança do bairro Primavera, sintetiza o novo perfil de clientes que os bancos buscam para expandir o microcrédito: empreendedores da região Sudeste do país. Aumentar a rentabilidade da operação também é desejo dos bancos.
No Brasil, as iniciativas de microcrédito produtivo começaram a se disseminar há cerca de uma década, especialmente no meio rural e nas regiões mais pobres do Norte e Nordeste. Mas os valores aplicados ainda são incipientes: em abril, essas carteiras somavam R$ 1,1 bilhão, 45% mais do que o saldo de um ano antes, segundo os dados mais recentes do Banco Central.
Para que as operações ganhem escala, agora são as periferias dos Estados mais ricos, do Sul e Sudeste, que passaram a ser alvo dos programas desenvolvidos pelos bancos, que têm de aplicar 2% dos depósitos à vista no microcrédito ou recolher os recursos compulsoriamente no BC, sem remuneração. Com o avanço pelos centros urbanos, as instituições tentam, em alguma medida, repetir o sucesso do Crediamigo, do Banco do Nordeste, o maior programa de microcrédito do país.
Só que, para dar esse passo, o desafio é encontrar uma nova forma de abordagem. Isso porque no Norte e Nordeste as experiências mais bem sucedidas replicam o modelo internacional, com a figura do agente de crédito, que, atuando próximo às comunidades, estimula a formação de grupos de crédito solidário, de 3 a 30 pessoas. Os tomadores não só recebem os recursos conjuntamente, como também dão aval solidário à operação, uma espécie de garantia mútua. Mas as instituições enfrentam resistência para adotar esse esquema nos centros urbanos.
O Santander percebeu isso e vem fazendo adaptações. Na carteira, o banco tem cerca de 96 mil microempreendedores ativos, a maioria concentrada no Nordeste. Tradicionalmente, o banco requer a formação de um grupo de três ou mais pessoas para conceder uma linha de crédito. Já no Sudeste, houve relaxamento dessa exigência e o empréstimo pode ser feito para uma dupla.
“No Sudeste há uma lentidão na formação dos grupos”, diz Jerônimo Ramos, superintendente de microcrédito do Santander. Mas se a quantidade de pessoas diminuiu, o rigor na análise da operação aumentou. Num grupo solidário, pode haver participantes com alguma restrição de crédito, mas na dupla, não.
O Banco do Brasil, depois de se firmar no financiamento a pequenos produtores rurais no Nordeste, instalou agências no Complexo do Alemão, no Rio, e em Paraisópolis, em São Paulo, como uma espécie de laboratório para ofertar microcrédito produtivo fora do meio rural. “O Sudeste tem uma imagem de desenvolvido, mas precisa de ajuda. É com essa demanda que queremos trabalhar”, diz Dan Conrado, diretor do BB.
Para prospectar o microempreendedor, o banco tem se aproximado das associações ligadas às comunidades carentes e do Sebrae, a agência de apoio do empreendedor e pequeno empresário. Em Paraisópolis, zona Sul de São Paulo, o tradicional letreiro “Banco do Brasil” foi substituído por “Banco de Paraisópolis”. A instituição faz barulho com um carro de som para atrair os pequenos empreendedores locais. No ano, até 22 de junho, o BB tinha direcionado R$ 69 milhões ao microcrédito produtivo, beneficiando 26,8 mil empreendedores.
O Itaú, que ainda não subiu no mapa e só atua no Sudeste, também encontrou dificuldade de formar grupos solidários na região. A estratégia, ao assumir as operações da antiga Microinvest, que veio no pacote da fusão com o Unibanco, foi abolir completamente a necessidade de um parceiro. “Nos centros urbanos, há uma maior dificuldade de formar laços. As pessoas mudam muito de residência e os vizinhos, às vezes, nem se conhecem”, diz Carlos Ximenes, presidente do conselho de microcrédito da instituição.
Segundo Eduardo Ferreira, diretor de microcrédito do Itaú, a operação não é rentável e apenas se paga. Mas a meta é mais do que dobrar sua base de clientes ativos até o fim de 2011, chegando a 10 mil microempreendedores.
Para atingir esse objetivo, uma das armas do banco são parcerias com redes de varejo, como o Magazine Luiza. Ao mesmo tempo em que o Itaú financia os consumidores, há o compromisso do lojista de encaminhar para o banco empreendedores em potencial. O Santander tem, desde abril, uma parceria semelhante com a Natura, e toca um piloto no Rio de Janeiro, com intenção de expandir para o restante do país. Pelo acordo, o banco oferece crédito para pessoas que querem se tornar vendedoras da marca, mas têm nome sujo.
Microcrédito atrai mais bancos
A busca dos bancos por microempreendedores no Sul e no Sudeste pode ajudar a transformar a geografia do microcrédito, hoje concentrada no Nordeste. Essa não deve ser, porém, a única mudança que o setor deve assistir nos próximos anos.
“A entrada de novos participantes vai dinamizar o mercado de microcrédito do Brasil”, diz Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Entre os novos participantes que devem ingressar no mercado de microcrédito brasileiro está o Mibanco, do Peru. Com experiência em microfinanças no país andino, a instituição já pediu licença ao Banco Central (BC) para atuar no Brasil.
Os novos participantes são atraídos pelo potencial de crescimento do microcrédito no país. As aplicações totais para o pequeno empreendedor cresceram cerca de 45% entre abril de 2010 e 2011, mais ainda exibem um saldo tímido, de R$ 1,1 bilhão, último dado do BC. O desembolso mensal vem aumentando progressivamente. Para se ter uma ideia, em abril de 2008 foram contratados R$ 92,6 milhões. Em abril último, o valor desembolsado foi de R$ 255,4 milhões.
Outra mudança importante deverá vir da presença mais agressiva de bancos públicos, como a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil, nos pequenos empréstimos, demanda direta da presidente Dilma Rousseff. Para Gonzalez, a vitória do Banco do Brasil (BB) no leilão do Banco Postal, dos Correios, é uma importante ferramenta para essa expansão. “O BB deve incorporar no Banco Postal a sua operação de microcrédito. É uma questão lógica, já que as agências dos Correios estão perto dos possíveis tomadores”, diz Gonzalez. O Banco do Brasil não quis comentar o assunto.
Além de incentivar a participação dos bancos estatais, o governo pode provocar outras mudanças no setor. Jerônimo Ramos, superintendente de microcrédito do Santander, diz que, há cerca de dois meses, um encontro no Banco Central reuniu reguladores com os representantes do setor de principais bancos do país. Na pauta estavam melhorias que poderiam ser feitas na regulamentação do microcrédito. Ramos não entra em detalhes sobre a discussão, mas em linhas gerais diz que há a intenção de se criar modalidades diferentes para os pequenos financiamentos.
O próprio Santander já tem um produto que pode dar uma ideia do que se planeja. É uma linha de crédito para pequenos empreendedores aplicarem exclusivamente em capital fixo.
Fonte: Felipe Marques, Valor Economico