Como roubar uma empresa
É uma verdade inconveniente, mas a operação Lava-Jato deixou claro: por muito tempo, roubar fez parte do modelo de negócios de uma parcela considerável do alto empresariado brasileiro. A delação premiada do grupo Odebrecht, que começa a ser divulgada a conta-gotas, está terminando de mostrar o elevadíssimo nível de promiscuidade das relações entre as empresas e o governo. As empreiteiras envolvidas na Lava-Jato já se comprometeram a pagar multas de mais de 15 bilhões de reais em acordos com os órgãos estatais de investigação. O pagamento de propinas e o superfaturamento de contratos geraram um prejuízo de 20 bilhões de reais aos cofres da Petrobras. Casos como esses, por seu conteúdo explosivo, ganham as manchetes. Mas dão a impressão de que os funcionários de empresas privadas só caem em tentação quando estão frente a frente com a gula de políticos inescrupulosos. Claro, não é bem assim. Olhe à sua volta. Há ladrões por toda parte.
Estima-se que as empresas percam 8% de seu faturamento em fraudes dos mais diversos tipos, sempre protagonizadas pelos próprios funcionários ou por terceirizados, segundo a consultoria de gestão Hands On Solutions. A coisa começa em pequenos delitos, como superfaturar em 2 reais um recibo de táxi, e vai até os mais sofisticados, como inflar balanços para esconder prejuízos e garantir bônus milionários. Quase sempre, as empresas tentam lidar com esse tipo de roubo com a maior discrição possível. Mas, no mundo real, cada corporação tem pelo menos uma história de quadrilhas desbaratadas depois de encontrar esquemas de desviar dinheiro. Trata-se de uma doença que vai comendo a produtividade das companhias brasileiras aos pouquinhos – e pouca gente está disposta a falar abertamente sobre ela. Com a Lava-Jato, essa atitude começa a mudar. “Muitas empresas nos contratam para saber o que a Polícia Federal encontraria se fizesse uma batida surpresa”, diz Antônio Gesteira, sócio da área de investigação da consultoria e empresa de auditoria KPMG. Os empresários passaram a reconhecer outra verdade inconveniente: não têm a menor ideia do que acontece dentro de suas empresas.
Apenas no ano passado, mais de uma dezena de fraudes corporativas se tornou pública no país. Uma das maiores aconteceu na varejista eletrônica Cnova, que era dona das-lojas online de Casas Bahia e Ponto Frio e foi fundida, no Brasil, com a Via Varejo, dona das lojas físicas das mesmas marcas, no fim do ano passado. Em uma vistoria de rotina em julho de 2015, um funcionário da área comercial fazia uma revisão dos estoques quando notou que algumas mercadorias em perfeito estado estavam classificadas como quebradas. Vistorias como essa são corriqueiras no comércio, mas o volume acendeu um alerta na Cnova e envolveu vários escalões na investigação – inclusive a presidência. O chefe de segurança fez uma blitz surpresa em um dos caminhões que saíam de um dos centros de distribuição da empresa e flagrou centenas de produtos novos, falsamente classificados como defeituosos, sendo retirados do local sem nota fiscal. Os acionistas decidiram, então, contratar o braço de investigação forense da KPMG (a auditoria não comenta o caso). Os investigadores levaram computadores, interrogaram funcionários e executivos, fuçaram onde bem entenderam. Ao longo dos cinco meses seguintes, a KPMG identificou o que a Cnova chamou, num comunicado, de “má conduta” de funcionários. Era, na verdade, um esquema fraudulento de desvio de produtos que mexia com os resultados da companhia: uma mesma venda chegou a ser computada mais de uma vez, o que inflava artificialmente os resultados. Para calcular o tamanho da fraude e seus impactos no balanço da empresa, foram necessários mais seis meses de investigação na contabilidade. O Grupo Pão de Açúcar, controlador da empresa, concluiu que a Cnova havia perdido, entre mercadorias, ajustes de estoque e mudanças contábeis, 400 milhões de reais em patrimônio. O controlador desconfiou da supervisão de executivos e de funcionários e acabou trocando parte da equipe da empresa no ano passado – o grupo diz que fez uma revisão de todos os processos e controles para evitar novos rombos.
Pelo tamanho do prejuízo e pelo fato de envolver uma empresa que tinha ações listadas na Nasdaq, a fraude na Cnova teve grande repercussão. Mas, enquanto os investigadores estavam vasculhando estoques e os auditores estavam refazendo o balanço da companhia, casos parecidos eram descobertos em empresas de diferentes setores no país. Um deles envolveu o Hospital Albert Einstein, de São Paulo. Em maio, o hospital recebeu denúncias anônimas que indicavam que três médicos da área de cardiologia favoreciam uma empresa na hora de comprar equipamentos. Ao analisar os e-mails dos médicos, o hospital descobriu que eles recebiam presentes da empresa. O Einstein, então, levou o caso à polícia, que investiga se os médicos fizeram procedimentos desnecessários apenas para usar os equipamentos vendidos pela empresa. Dois médicos foram demitidos e um foi afastado. Em abril, a Caixa Econômica Federal informou ter descoberto que funcionários recebiam propina para burlar regras de financiamento imobiliário em Alagoas. Cinco funcionários são investigados pela Polícia Federal. A empresa de energia elétrica Energisa desvendou um esquema que envolvia mais de 100 pessoas em Mato Grosso do Sul. Funcionários recebiam propina para reduzir a conta de alguns consumidores. A companhia acionou a polícia e fez duas prisões em flagrante. Também mudou a forma de registrar o consumo de seus clientes. Agora os relógios de luz têm de ser fotografados a cada leitura – assim, os funcionários não podem registrar o que bem entendem.
O prejuízo para as dez empresas que admitiram ter sido roubadas por funcionários em 2016 chegou a 3 bilhões de reais. O número real, naturalmente, é bem maior. “As empresas preferem discrição ao lidar com esse assunto, para não expor suas fragilidades. São poucos os casos que se tornam públicos”, diz Ian Cook, diretor da consultoria Kroll , especializada em prevenção de riscos corporativos e investigação de fraudes. Segundo duas dezenas de executivos de empresas. auditorias e escritórios especializados em investigar fraudes consultados por EXAME as fraudes são tão corriqueiras que algumas empresas chegam a incluir estimativas de perdas com roubos na previsão orçamentaria. “De cada dez empresas que nos procuram para ajudar em investigações, nove sofreram fraudes mesmo”, diz Clarissa Oliveira, advogada da área penal empresarial do escritório de advocacia Veirano.
Existe mais de uma centena de maneiras de roubar uma empresa. Apenas nas áreas responsáveis por compras e pelo pagamento de despesas e fornecedores, são mais de 70 formas de desviar dinheiro, segundo profissionais do setor. Em investigações internas, empresas já descobriram funcionários que modificavam o número de boletos de cobrança usando um programa de edição de imagem com o intuito de destinar pagamentos às próprias contas ou às de parentes. Alguns funcionários criaram até empresas de fachada para receber como se fossem fornecedores da companhia. Em junho, a Caixa Econômica (de novo) desvendou um esquema em Fortaleza, com prejuízo de mais de 50 milhões de reais, em que funcionários criaram empresas de fachada para tomar empréstimos no banco (que, claro, nunca seriam pagos). A farmacêutica Bayer descobriu que um funcionário da operação brasileira, responsável pelo registro de contratos de prestação de serviço, favorecia sua microempresa nas contratações. A farmacêutica demitiu o funcionário, que ainda tentou brigar por uma indenização alegando que não tinha poder de decisão (e perdeu). Os pedidos de reembolso de despesas são outra tradicional fonte de irregularidades. Entre as mais comuns estão notas fiscais de gastos em motéis, restaurantes caríssimos nos fins de semana e hotéis em feriados. Numa investigação comandada pelo escritório Demarest Advogados, o gerente de vendas de uma fabricante de material de construção chegou a apresentar o recibo de diárias num hotel em Copacabana, no Rio de Janeiro, em pleno Réveillon.
Estudos de consultorias no Brasil e no exterior mostram que um terço das fraudes acontece justamente como as descritas acima: ou seja, um pouquinho por dia, com o desvio de alguns produtos ou o reembolso de pequenas despesas que nada têm a ver com a companhia. E não para de crescer. Um levantamento global da consultoria Kroll mostra que 82% das empresas afirmam ter sofrido pelo menos uma fraude nos últimos 12 meses -o maior índice desde 2012, quando a pesquisa teve início. Os desvios que são potencialmente mais danosos para o caixa das empresas envolvem altos executivos e são feitos em aliança com fornecedores e até clientes. Segundo outra pesquisa, realizada pela KPMG, as fraudes em conluio respondem por 76% do total na América Latina, e isso faz com que durem, em média, três anos. Outro levantamento, da Associação Internacional dos Investigadores de Fraude, indica que o envolvimento da cúpula causa danos quase 11 vezes maiores do que fraudes cometidas pelo baixo escalão, com prejuízo médio de 703 000 dólares. Os casos de corrupção no Brasil ilustram bem essas estatísticas, já que envolvem presidentes e até acionistas das empresas – apesar de, nesses casos, eles roubarem para as empresas, e não das empresas. Mas um exemplo internacional é o da montadora Volkswagen. Em 2015, a companhia admitiu ter adulterado o mecanismo que mede a emissão de gás carbônico de automóveis, num esquema que envolveu dezenas de funcionários de vários níveis e custou à empresa 16 bilhões de euros entre multas, recalls de veículos e ações judiciais (o montante equivale a todo o lucro operacional da companhia). Ao pedir demissão, Martin Winterkorn, presidente mundial da Volks, e Michael Horn, presidente da empresa nos Estados Unidos, afirmaram ter falhado no controle da montadora.
Quanto maior o número de funcionários, segundo os especialistas, ainda mais difícil exercer o controle em casos de conluio. Nos Correios, há em média uma operação por ano de descoberta de fraudes internas – no ano passado, em outubro, a Polícia Federal prendeu nove funcionários após uma denúncia feira pela própria área de segurança dos Correios. Em um esquema paralelo de postagem de mercadorias e malas diretas, os funcionários fraudavam as pesagens e usavam a rede para distribuir itens sem pagamento, causando um prejuízo de 147 milhões de reais em dois anos. Em fevereiro deste ano, quatro funcionários foram condenados a regime fechado por peculato e falsificações no plano de saúde que custaram 7 milhões de reais – nesse caso, foram outros funcionários do mesmo departamento que fizeram a denúncia.
COMPRANDO A BRIGA
No novo ambiente criado pela Lava-Jato no Brasil, ainda que a maioria das empresas prefira jogar as fraudes para baixo do tapete, está aumentando o número de companhias que decidem comprar a briga com os funcionários fazendo investigações detalhadas e aumentando as punições (como demissões por justa causa, pedidos de ressarcimento e ações judiciais). Também cresce o número de empregados que delatam o colega infrator. “O desgaste e o custo financeiro de fazer as investigações e demitir funcionários por justa causa são maiores, mas têm efeito didático”, diz Romeu Zema, dono da rede de varejo Eletrozema, de Minas Gerais. A empresa criou uma linha telefônica 0800 para que os funcionários possam fazer denúncias anônimas – se quiserem se identificar e a denúncia for confirmada, ganham bônus de um salário. De acordo com uma pesquisa da consultoria ICTS, especializada em investigar fraudes corporativas, o número de denúncias de irregularidades recebidas pelas empresas brasileiras aumentou 45% em dois anos.
Ao investigar suspeitas, os especialistas procuram pelo que chamam de triângulo da fraude, que é formado por oportunidade, motivo e atitude. A oportunidade surge nos casos em que há brechas nos controles das companhias, e especialistas são unânimes em afirmar que é impossível controlar tudo. “As empresas sabem que é impossível ter controle total de processos, pois a burocracia e a lentidão impediriam a companhia de funcionar”, diz Fernando Fieider, sócio da consultoria ICTS. Por isso, é importante monitorar a atitude dos funcionários.
Grandes companhias e fundos que investem em empresas, como GP e Actis, recorrem a “testes de integridade” na hora de avaliar executivos. Esses testes são aplicados por empresas especializadas na investigação de fraudes corporativas e geralmente usam como base um método conhecido como Scan, desenvolvido por um chefe da polícia israelense em 1981. O teste é um questionário que alterna perguntas sobre a experiência profissional e pessoal do executivo e afirmações que podem ser aceitas ou questionadas – por exemplo: roubar 1 milhão de reais do caixa de uma empresa é diferente de roubar 10 reais, certo? O objetivo é indicar quem está mais propenso a cometer alguma irregularidade. A construtora mineira MRV é uma das adeptas desse sistema para cargos estratégicos: aplica o reste ao contratar e também periodicamente em executivos e funcionários em cargos de maior risco e responsabilidade. “O fato de ter uma operação dispersa, em 142 cidades, nos faz mais preocupados em reduzir vulnerabilidades”, afirma Júnia Galvão, diretora de administração da MRV.
Por fim, a lista de motivos que levam os funcionários a tirar dinheiro das emprsas em que trabalham costuma aumentar em meio a uma crise econômica … Dificuldade financeira na família
pode ser um motivador para um funcionário propenso a irregularidades”, diz Cynthia Catlett, diretora da FTI Consulting, especializada em investigações. “Sentimos isso nos últimos meses”. afirma Sidney Santos, diretor da Sid Signs, rede de material de comunicação visual. Com dez lojas e faturamento de 50 milhões de reais, a empresa teve desde furtos de material em estoque até desvios de caixa de 150 000 reais na área administrativa há dois anos – nesse caso, ele decidiu dar uma chance à gerente, que em uma semana estava roubando de novo.
No fim do ano passado, um funcionário chamou a atenção pelo número de garrafas térmicas que levava na marmita – até a empresa descobrir que ele as enchia de tinta de impressora para revender. “Devo estar sendo roubado neste momento”, diz Santos. O número de esquemas desmascarados também aumenta na crise porque, em períodos de dificuldade, as empresas se preocupam mais em cortar gastos para tentar elevar a rentabilidade. Ao monitorar as despesas mais de perto, acabam descobrindo os problemas. Contratados por empresas que querem implementar projetos de redução de custos, os sócios da consultoria Gradus dizem que encontram fraudes sem nem mesmo procurá-las. Eles citam o exemplo de uma produtora de açúcar e álcool que, para tentar evitar roubos, pesava os caminhões de cana-de-açúcar que comprava. Sabendo disso, os funcionários molhavam a cana, que, as sim, ficava mais pesada. E, dessa forma, conseguiam desviar parte da mercadoria.
PALAVRAS SUSPEITAS
As empresas brasileiras têm feito mais investimentos em tecnologia para tentar minimizar os riscos de fraudes – ou, pelo menos, aumentar a velocidade com que as identificam. É comum que as companhias façam buscas periódicas em documentos e e-mails, nos computadores e também em telefones corporativos à procura de palavras “suspeitas”. “Bola” é uma dessas palavras, por ser usada como sinônimo de “propina”. Além disso, monitoram os gastos das áreas de compras: se algo foge do padrão, um aviso pode ser disparado. Em geral, esses avisos servem de ponto de partida para iniciar uma investigação mais aprofundada. a prática, porém, o jeito mais eficaz de descobrir uma fraude é contar com a ajuda dos próprios funcionários. De acordo com uma pesquisa global da Associação Internacional de Investigadores de Fraudes, quase 40% dos desvios são revelados por denúncias de empregados, fornecedores e clientes. As auditorias, externas e internas, desvendam apenas cerca de 20% dos casos; e os sistemas remotos de monitoramento, menos de 5%. É mais fácil descobrir uma fraude por acidente (6% do total, de acordo com a pesquisa da associação).
Na tentativa de prevenir fraudes, os especialistas alertam que as empresas podem acabar passando do ponto. Em 2014, a empresa aérea American Airlines foi multada em 1 milhão de reais pelo Tribunal do Trabalho, em Brasília, por usar detector de mentiras em testes de seleção de candidatos e em funcionários no Brasil. Um embate comum entre empresas e o Ministério Público do Trabalho é a revista de funcionários e de sua bolsa e mochila ao entrar e sair de lojas, estoques ou fábricas. Nos últimos anos, empresas como a fabricante de bens de consumo Unilever, as redes de supermercados Walmart e Makro e a varejista de moda Zara foram alvos de processos por práticas de revista consideradas abusivas ou constrangedoras.
Com o endurecimento da legislação anticorrupção no mundo todo, as empresas estrangeiras também aumentaram as investigações de fraude – e passaram a punir os responsáveis com mais frequência. Há dezenas de casos de executivos e empresários presos – e outros tantos condenados a pagar multas milionárias quando foi comprovado que estavam envolvidos em esquemas de desvio de recursos e fraudes. No Reino Unido, três executivos da varejista Tesco es tão sendo julgados civil e criminalmente por inflar os lucros no balanço da companhia. Nos Estados Unidos, um dos maiores escândalos de fraude contábil da história foi engendrado pelo diretor financeiro da empresa de energia Enron, descoberta em 2001. O executivo Andrew Fastow teve de devolver 24 milhões de dólares e passou seis anos na cadeia (e a Enron quebrou). No Brasil, porém, nenhum executivo foi parar na cadeia por fraudar um balanço. Mas, pelo andar da carruagem, não vai demorar tanto assim.
Fonte: Revista Exame